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Esta obra foi selecionada pela Bolsa Funarte de Reflexão Crítica e Produção Cultural para Internet
 
 
 
 

 

 
:: Quem é quem » Atores» Ricardo Sanfer
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Entrei para o teatro praticamente num tropeço. Sempre fui ao teatro com meu pai. Ele escrevia rádio-novela, que representava em casa. Minha mãe era a atriz dele. Em torno de um gravador alemão, a família se reunia, junto a tios, primas, e todos queriam participar. Eu fazia a parte da sonoplastia: fazia barulho de água na bacia, essas coisas. Com 13 anos, assisti “O Colecionador”, com Dina Sfat, e me apaixonei. Nesta mesma época, vi Marco Nanini em “Pippin” e Paulo Auran em “Rei Lear”, Tônia Carreiro, grandes espetáculos.

Nasci em São João de Meriti e vim morar em Niterói porque meus pais se separaram. Minha mãe achou melhor que todos os filhos morassem com ele. Meu pai era Rosa Cruz e meu irmão mais velho, também. Frequentavam a sede da rua Presidente Backer. Lá, meus irmãos conheceram a Maria Jacintha, porque ela também era Rosa Cruz e estava montando um grupo. Começaram a ensaiar e me chamaram. Maria Jacintha me perguntou se não queria ajudá-la, ficar ao lado dela, ajudando-a nos ensaios. E fui me tornando assistente dela aos poucos. Em todos os ensaios, quando faltava um ator, ela pedia para eu ler. E eu lia para ajudar, mas quando ela me perguntava se não queria ser ator, eu respondia: “Isso não, absolutamente não!”.

Durante os ensaios de uma peça mística chamada “Alvorecer”, um ator que estava no elencoe se mudou para Barra Mansa, e a Maria Jacintha me perguntou se eu podia ir lendo, até ela arranjar um outro ator. Foi então que me disse: “Olha, você vai ter que entrar em cena, eu não acho ator de jeito nenhum”. Fiquei apavorado, morri de medo. Estreamos em junho de 1977, no auditório do Abel.
Fizemos a peça às 17h, como se fosse um espetáculo infantil. O teatro estava lotado e eu apavorado, colando o texto toda hora, morrendo de medo de pagar um mico, esquecer o texto. Coloquei aquela túnica para fazer o coro e quando as luzes foram acesas, eu não enxergava nada. Quando acabou, todos aplaudiram e vieram atrás de mim: “Que voz linda, que imponência”. Disse para Maria Jacintha: “Não, sou um canastrão, estava apavorado, nunca mais me ponha nisso”.

Então, ela começou a ensaiar uma outra peça, e eu dei uma sumida. Maria Jacintha ensaiava “O Casaco Encantado”, de Lucia Benedetti. O ator que fazia o bruxo, também se mudou para outra cidade, e a Jacintha me perguntou: “Você pode nos ajudar?”. “Ajudo na leitura, mas nada de ator”. Fui lendo, lendo, lendo, e quando chegou perto da estréia, ela me disse: “Nós não arranjamos ator, vai ter que ser você. Vai deixar todos os seus amigos, seus irmãos, na mão?” E lá fui eu fazer o bruxo, e gostei.
Jacintha nos deixava muito à vontade, mas era muito firme naquilo que queria. Voltava a cena muitas vezes, corrigia, mas não falava para fazer igual a ela. Uma vez, entrei com uma mão como se fosse suja, porque eu era um padeiro e ela disse: “Que mão é essa? Esquece essa mão. Está horrível. A mão tem que fluir, está forçado”. Discuti com ela, afinal era o padeiro. Pediu, então, que outro ator fizesse a cena com a mão suja. E aí, vi que estava, realmente, horrível. E ela também queria que eu dirigisse, achava que eu tinha o talento para dirigir.

Nessa época, já era amigo da Jacintha: frequentava a sua casa, jantávamos juntos... Os presentes que oferecia eram sempre livros, que era preciso ler, ler, ler. Nas conversas, falava sobre atores franceses, teatro grego. Os ensaios eram como um ciclo de estudos. Fizemos dois anos de leitura de Martins Pena.
Fizemos de novo “O Casaco Encantado” com outro elenco, não necessariamente da Rosas Cruzes. Era o início do Teatro Estável de Niterói, com repertório, o que fazia com que estivéssemos sempre em cartaz. Sem sede, usávamos o Clube dos Árabes, em São Domingos. Cediam uma sala para ensaio, e com o prestígio que Maria Jacintha tinha, sempre arranjava uma verba com Orlando Miranda para os nossos espetáculos. Maria Jacintha assumiu a direção de teatro da FAC – Fundação de Atividades Culturais – e criou o Teatro Estável de Niterói. Em dezembro de 1978, estréio a primeira peça como profissional: “Anfitrião 38”. Estreamos no Teatro Municipal lotado com 500 pessoas! No elenco, entre outros, Marcos Toledo, Ricardo Fagundes, Miriam Teresa e Breno Bonin. Fazia o Trombeta.

Em seguida, veio “A Canção Dentro do Pão”, texto de Raimundo Magalhães Junior. Continuávamos no Clube São Domingos e no Clube de Regatas Icaraí. Eu e Jacintha abrimos uma conta para administrarmos a verba. Andava pela cidade de bicicleta correndo atrás de produção. Fazia tudo, para mim foi uma escola. Tinha que atuar, correr atrás, comprar figurinos, tecidos, pedir doações nas lojas. Estava com 20 anos.
A gente já estava ensaiando há seis meses e nada de estrear, e aí entrou o Jeferson Beltrão, que já tinha feito “O Casaco Encantado”. Estreamos na Associação Médica, que nós estávamos transformando em um teatro. Antes, era um auditório. A nossa idéia era transformar em um teatro mesmo, e o Orlando Miranda fez uma proposta para os administradores da Associação, com verba especifica. Enviou até um arquiteto, mas o teatro tinha que ser administrado por eles, do INACEN – Instituto Nacional de Artes Cênicas. A Associação não aceitou.

Como grupo de Niterói, inauguramos, logo depois de Walmor Chagas, o Teatro da UFF. A primeira peça adulta foi “A Canção Dentro do Pão”, em 1982. Em ’83, fizemos “Cidade Assassinada”, também na UFF. Um texto dificílimo de Antonio Calado. A partir desse espetáculo, pedi a Jacintha para me envolver mais no processo de criação. Me meti na iluminação, e ficou muito legal. Me meti nos figurinos, e pesquisei tecidos e cores. Eu era ator e também produtor. Era uma peça muito difícil para atores que estavam começando, muito pesada, de muito texto, e eu não queria que ela fizesse. Disse que a peça não era ainda para nós, era muito complicada, além de o elenco ser fraco. Falei para fazer uma outra, mas ela estava irredutível. Fizemos e ficamos em cartaz um mês. Teve público, mas foi muito criticada, porque os atores não seguravam. E ela disse que as pessoas tinham que nos ver como nós éramos, começando, que tinham que entender que a gente estava iniciando, e que o projeto era com um belo texto, que tínhamos que aprender a dizê-lo. Os ensaios demoraram bastante, quatro4 meses, porque era uma escola, um processo muito vagaroso e minucioso.

Jacintha decidiu que eu dirigiria “O Milagre do Arco-Íris”, de Vanda Fadel, uma amiga dela. Apareceram Marcello Caridade, Claudio Handrey, Jaqueline Brandão, Eleusa Mancini. Isso em 1984. Ela disse que queria que eu assumisse a direção, e sem a intervenção dela, que só iria fazer uma pequena supervisão. Mas eu não queria. Aquela turma toda não combinava. Realmente não combinava! Um caos! Então eu disse que não ia fazer, pois não estava me sentindo preparado. E ela também não fez.
Depois fui para o Grupo Papel Crepom, onde onde atuei em espetáculos como “Sangue, muito Sangue” e “Adão e Eva”. Ela até ia me assistir, mas houve um distanciamento muito grande quando eu parti pra outros grupos. Na verdade, eu queria experimentar outras coisas, conhecer outras coisas e pessoas. Eu disse pra ela que éramos só nós dois, sofrendo muito pra fazer teatro. Na época, ela já não tinha muita saúde, e eu não queria ficar preso a isso.

Posso dizer que tenho a maior consideração por tudo que ela fez por mim, e que eu gostaria de ter continuado o Teatro Estável, mas a gente não estava conseguindo seguir. Eu estava há dois anos só fazendo teatro, e precisava trabalhar em outra coisa, ganhar a vida, pois não estava entrando dinheiro no meu bolso, e ela também já estava cansada.

Depois da minha partida com a Jacintha, eu participei de muitos grupos da Cidade. Entre eles, como eu disse, o Papel Crepom, além da Cia Falk. Assim que eu me afastei, eu dirigi “O Assalto”, em 1987, num projeto da prefeitura chamado Sete em Ponto. No elenco, Evans de Brito e Ricardo Brandão. Nessa época formava-se o Grupo dos Cinco, composto por Elyzio Falcato, Ricardo Brandão, Luis Claudio, Evans de Brito e eu. O grupo tinha toda a aparelhagem técnica do teatro, e com ele eu dirigi “Pinóquio”.
Posso dizer que eu sempre pulei de um grupo para outro, porque para o que me chamam eu faço. Mas eu tenho saudades da minha cidade, de como ela era, da época em que a gente trocava mais, conversava mais.

Hoje falta de espaço mesmo. O Leopoldo Fróes era um lugar que a gente chegava e estava sempre aberto. A gente ia lá pra tomar um café, beber uma cerveja, bater papo, falar de teatro, e a coisa toda acontecia, como em “O Assalto” e acredito que como em muitas outras peças. Na época, os festivais fervilhavam, principalmente no Leopoldo Fróes. Na realidade, tudo vinha de lá, daquela casa, que era nossa: o nosso lugar pra conversar, pra chegar, trocar idéias, criar, ensaiar, e tudo mais. Mesmo quem não era ator estava lá com a gente, bebendo cerveja com a gente. Lá, os artistas se juntavam ao público formado por amigos de atores e fãs.

O Teatro da UFF também era muito bom. Fizemos com o Ronaldo Mendonça nos anos 1980 “O Auto da Compadecida”. Foi lá também que eu estudei mímica moderna com Luis Lima e assisti palestras do Ron Daniels, entre outros. A UFF ajudava culturalmente a cidade. Hoje ela não participa de quase nada. O teatro não é disponível, os projetos não acontecem. Naquele período nós fizemos muitos festivais de dança. Como eu disse, era uma época efervescente. Hoje em dia eu produzo quando eu acho que aquilo tem a algo dizer... Que tem todo o envolvimento do elenco, de pessoas que abraçam aquela causa, que querem, pois é esse o ambiente propício ao espetáculo, e é disso que eu gosto. Não adianta pegar um projeto com pessoas negativas envolvidas. Por isso, não me considero produtor, pois eu só produzo aquilo que acho que vale a pena.