Já
no primeiro ano da faculdade, em 1968, me filiei ao
diretório acadêmico do Instituto de Letras.
Foi quando começou o Grupo Laboratório
do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense
Integrado à Comunidade. Estava sentada na cantina
conversando com o José Carlos Gondim, que era
do nosso diretório e aluno do último ou
penúltimo ano do curso, quando, ao falar sobre
o marasmo da vida acadêmica, nos ocorreu criar
um grupo teatral. O Gondim tinha sido aluno de teatro
do Amir Haddad numa época em que este esteve
em Belém do Pará, onde o Gondim nasceu.
Na mesma hora escrevemos um aviso para chamar quem estivesse
interessado em fazer parte de um grupo de teatro, e colocamos
no quadro da portaria da escola.
Na primeira convocatória já apareceu o primo
de uma amiga da faculdade, a Suely Gualda, que não
estudava lá, mas se interessou em compor o grupo. Era
o Antonio Carlos Pereira, que mais tarde o Brasil conheceria
apenas como Tonico Pereira. Foi assim que nos conhecemos e
demos início a essa grande amizade que dura até
hoje. Mas havia outras pessoas, de várias áreas
da faculdade, porque no nosso prédio tinha gente de
Letras, Pedagogia e Geografia. O Gilson, que era da Geografia,
ainda trouxe um amigo dele da História, o Ronaldo Florentino.
O Genésio, que era de Letras e também fazia
curso no Itamaraty, tanto que depois fez carreira diplomática.
Marisa Alvarenga e Marilene Calheiros eram de Pedagogia. Veio
também a Eliana Bueno, que hoje mora em Paris. Mas
em termos de teatro, só eu e o Tonico seguimos carreira
profissionalmente.
O Gondim propôs ao grupo um sistema de interpretação
baseado na linha desenvolvida por Jerzy Grotówski (1933
– 1999). E então começamos a discutir
qual peça montaríamos. Foi escolhida “O
Futuro Está nos Ovos”, do Eugène
Ionesco, numa tradução minha e do Gondim. Misturamos
esse texto de teatro do absurdo, escrito em 1957, com uma
linguagem mezzo grotowskiana, mezzo brechtiana. Era uma coisa
bem vanguardista na época.
JERZY
GROTÓWSKI
Para
se compreender melhor, a teoria do Grotówski parte
da idéia do ator santo. É uma série de
exercícios que pressupõe formação
diferente da técnica que se tinha até então.
Parte de uma linha psicofísica, onde se trabalha a
questão respiratória, postural, de modo que
isso conduza a um determinado estado que propicie a criação.
Naquela época, o livro do Grotówski, Em Busca
de um Teatro Pobre estava surgindo no Brasil, e aquilo estava
um fervo.
Então, todos esses laboratórios de que hoje
se fala, em que você começa fazendo exercícios
físicos pesados para se trabalhar toda essa questão
psicofísica, mas dentro de uma forma que leve seu corpo
até o limite, todos esses laboratórios têm
sua origem nessa perspectiva. São coisas muito específicas,
exercícios que têm muito a ver com ioga, com
algumas artes marciais. Ou então, momentos de improvisação,
mas não sobre determinado tema ou circunstância,
e sim partindo de estados da alma, em que você tenta
se encontrar com sensações do seu eu profundo.
Essa é uma linha exatamente oposta à do Brecht,
que levanta a questão do efeito de distanciamento para
se melhor propiciar um olhar crítico sobre aquilo o
que está sendo apresentado. No Grotówski, não.
Nele, há uma entrega absoluta, um contato total consigo
mesmo, a partir de estímulos e determinadas práticas.
Tudo para ajudar a acessar sentimentos e sensações,
com muitos dos quais você nem sempre está, inclusive,
preparado para lidar. Mas isso era uma coisa muito do nosso
tempo.
O
FUTURO ESTÁ NOS OVOS
A
montagem de “O Futuro Está nos Ovos” aconteceu
depois de um ano de ensaio, em 1969, e foi muito bem sucedida.
Ganhamos o Festival de Teatro Jovem de Niterói, no
Teatro Municipal João Caetano, e aconteceu que eu e
o Tonico recebemos prêmio de atores coadjuvantes. Voltando
à nossa montagem de “O Futuro Está
nos Ovos”, vale dizer que o enredo do espetáculo
não era tão bem definido que desse para se criar
uma história clara, afinal, era Teatro do Absurdo,
como convinha a um texto do Ionesco.
Uma coisa engraçada aconteceu na estréia. O
palco ficava cheio de ovos de isopor, durante a música
final, e o Tonico começou a jogar os ovos na platéia.
O Tonico arremessou os ovos de isopor, e deu confusão.
O problema não era ele ter jogado os ovos na platéia,
mas sim ele ter tido essa iniciativa sem que isso fosse uma
coisa decidida antes pelo grupo, combinada. Tudo o que íamos
fazer dependia de muito estudo, e a gente realmente era um
grupo muito preparado.
Seguimos com o Grupo Laboratório, que acabou sendo
composto por uma espécie de elite intelectual da faculdade,
porque nós pensávamos muito, questionávamos
tudo e, para montarmos uma cena, iam semanas de debates. Todos
muito ativos, muito pensadores, muito palpiteiros, o que era
uma característica ótima da minha geração.
Hoje, se você dá um pitaco ou uma sugestão
ao trabalho do colega, a pessoa normalmente já leva
para o lado pessoal, se ofende, ou algo parecido. Eu adoro
ouvir críticas. Nessa época da faculdade, portanto,
nós pegávamos muito pesado uns com os outros,
no bom sentido; no sentido de nunca escamotearmos aquilo o
que estávamos pensando sobre o resultado do trabalho
do colega. Sempre me incomodei quando percebia que um texto
estava decorado, quando não havia sinceridade, ou incorporação
efetiva daquilo o que estava sendo dito, isto é, compreensão.
Além de ter pena do ator, por ver o esforço
dele ali. Sempre tive esse critério, essa preocupação.
E o Tonico era engraçado, porque se você dizia
seu texto e ele não acreditava no que você estava
falando, ele não dava a réplica dele. “Ué,
por que você não responde?” E ele: “Responder
para quem? Não tem ninguém aí!”
Ou seja, para que o jogo aconteça, efetivamente, um
ator precisa convencer o outro.
O Tonico foi fundamental para mim nesse sentido, ele é
muito sincero em cena.
PROMETEU
ACORRENTADO
O segundo espetáculo foi o “Prometeu Acorrentado”,
do Ésquilo, que nós estreamos no prédio
do DCE da faculdade. A montagem partiu de uma concepção
totalmente grotowskiana. Até então, o Grotówski
estava presente apenas no processo de treinamento e preparação
dos atores. Agora não. A montagem de Prometeu..., em
si, era baseada nessa linha, isto é, todo o conceito
no que diz respeito ao resultado final do espetáculo.
O que aconteceu foi o seguinte: esse prédio ainda estava
em obras, só havia o esqueleto, e por isso ainda não
tinha sido ocupado. Mas nós o invadimos mesmo assim,
e começamos a dar vida àquele lugar. Eu, inclusive,
durante uma época morei no DCE, porque havia um certo
acordo feito pelo reitor, segundo o qual aluno não
podia ser preso dentro do campus. E eu militava, então
para não ser presa fiquei vivendo ali por uns tempos,
comendo na reitoria. Afinal, eu era seguida pelo DOPS. Isso
não era uma paranóia minha, era algo sabidamente
concreto.
Estreamos o Prometeu..., portanto, com o teatro do
DCE ainda em obras e usando todo o lugar onde seria a platéia,
já que não havia cadeiras nem nada. Tanto que
quando o público entrava, eram distribuídas
umas esteiras, e eles iam se acomodando no chão, em
volta dos corpos da gente, que estávamos deitados,
distribuídos pelo teatro. Assim nós iniciávamos
toda a gênese da tragédia, a partir da gênese
do próprio homem.
O espetáculo começava colocando a questão
do espaço dos homens, e do espaço dos deuses.
O público, na realidade, é que ia determinando
as áreas de ação que a gente teria. Então
quando levantávamos, dependendo da quantidade de pessoas,
o espaço de trânsito que nós tínhamos
era muito pequeno. E a configuração cênica,
claro, mudava a cada noite, o que era extremamente enriquecedor,
mas exigia uma consciência redobrada de nós a
respeito da peça que estávamos fazendo, já
que a marcação era criada sempre na hora. Ou
melhor dizendo, havia áreas que eram fixas, mas que
não eram absolutas. Por isso, só quando a gente
levantava é que ia saber como aconteceria a peça,
o que para mim era muito complicado, porque eu sou míope
e não se usava óculos no ano 300 a.C.
Durante o processo de composição da peça,
nós agregamos uma série de informações
de áreas muito distintas, como a bioenergética,
por exemplo, que fossem úteis ao nosso objetivo, além
dos exercícios todos do Grotówski em si. Nunca
fomos muito fundamentalistas em nada, então misturávamos
as linguagens! Tudo isso, em cima de uma discussão
política muito forte, porque a montagem do “Prometeu
Acorrentado” era uma forma de falarmos da ditadura metaforicamente.
Hoje eu questiono um pouco a atitude libertária do
Prometeu.
DESEJO
SEM VONTADE NÃO RESOLVE
A
percepção do através de mim sempre foi
muito prazerosa. Como numa analogia com a coisa do cavalo
mesmo, do santo que incorpora, da entidade. Só que
neste caso, eu reconheço que ele está acontecendo
em mim, e não me identifico necessariamente com ele.
É como o Tonico Pereira diz: o ator não pode
atrapalhar a personagem. Tem que permitir que ela aconteça.
Nem sempre esse fenômeno é possível, a
ponto de a personagem ganhar vida própria.
Só o Grupo Laboratório daria um livro de milhares
de páginas pelo que significou em minha vida, pelo
tanto que aprendi, vivenciei, compartilhei, criei e descobri.
Era sempre como se fosse o mesmo tema visto por olhares diversos
e muitas das vezes divergentes, paradoxais e contraditórios
e, exatamente por isso, muito rico, instigante, provocador
– essa palavra que está na moda. E não
olhávamos só para o grupo. Todos trabalhavam
para se manter e militavam em alguma causa que ia da religião
(por incrível que pareça) até a militância
política propriamente dita – tanto estudantil
como outras. E tudo era vivenciado num padrão e num
grau de intensidade que hoje deixaria muito pretendente a
ator em estado de total apoplexia. E Falo isso por prática.
Dirijo, atuo, trabalho como coach, e vejo como a resistência
das pessoas diminuiu. Esse fenômeno, aliás, foi
um dos motivos que me levou a fazer o meu livro da Coleção
Aplauso. Queria que ele fosse também uma injeção
de ânimo, uma forma de mostrar que não é
só o desejo que governa nossa vida e criação.
Desejo sem vontade não resolve.