Um quintal é o primeiro palco que uma criança pisa. Pode ser uma
área ou um pequeno espaço qualquer onde ela se exteriorizará,
largará sua imaginação e desenvolverá sua criatividade.
- Wanda Bedran
Durante
os anos 70, eu, minha mãe Wanda Martini Bedran e suas irmãs e
primas, Wilma Martini Brandão, Wandirce Martini Wörhle, Maria de
Lourdes Martini e Maria José Martini Quintas, fundamos, ao lado de uma
grande parte da família, o “Quintal Teatro Infantil”, inaugurado
em 16 de setembro de 1973, numa agradável rua do bairro de São
Francisco, na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro.
O Teatro
Quintal, de duzentos lugares, foi erguido literalmente no quintal da casa de
uma das irmãs, Wandirce, com projeto arquitetônico de Junir Brandão,
marido da outra irmã, Wilma. Quem passava pela Rua General Rondon, 15,
voltava sua atenção para uma casa de esquina sombreada por enormes
amendoeiras com um toque especial no muro branco: uma grande margarida pintada
no lugar no buraco onde era a bilheteria.
Participavam do grupo 23 elementos
da família, entre pais, mães, irmãos, avós, primos,
tias e tios, que através da arte conseguiram a façanha de viabilizar
a convivência entre as três gerações.
A idéia
da fundação de um teatro para crianças surgiu com Wanda,
Wandirce, Wilma e Maria José, que quando jovens realizavam apresentações
de teatro de bonecos nos morros. Com o casamento de cada uma delas, o trabalho
foi interrompido até 1973, quando então desejaram a volta do grupo
e mobilizaram toda a família, já na segunda geração.
Ali no nosso “Quintal”, pudemos experimentar linguagens cênicas
diversas sempre buscando falar à infância, e nos revezávamos
nas inúmeras funções pertinentes ao mundo das artes cênicas,
desde a construção do próprio teatro em formato de arena,
até a confecção de figurinos, cenário, bonecos e
adereços, criação dos textos, músicas direção,
produção, iluminação, controle do borderaux, organização
da cantina (que se chamava A Casa do Sapo Guloso), enfim todos os passos que
pertencem a uma trupe teatral.
Eu, então com 17 para 18 anos, tratava da direção musical
dos espetáculos, e todos tocávamos instrumentos de percussão,
violão, acordeom, flautas, e objetos sonoros como bacia com areia para
obtermos o som da água, ou conchas e chaves enredadas por um fio, que
produziam um efeito mágico diante dos olhos encantados das crianças
e dos adultos.
Os textos das peças infantis do “Quintal” eram de autoria
de Maria de Lourdes Martini (também a diretora geral do grupo), Wanda
Martini Bedran, Maria Mazzeti e Maria Arminda Aguiar. Dotados de uma enorme
brasilidade, evocavam situações rurais às vezes datadas
de outras épocas, o que favorecia a minha pesquisa dentro do cancioneiro
do Brasil para que as nossas interpretações tivessem mais vigor
e mostrassem às crianças e seus pais um mundo sonoro rico e diferenciado.
Já aí se fazia presente aquela memória das modinhas, cordéis,
romances, e das estrofes rimadas e ritmadas cantadas por minha mãe durante
minha infância, e toda a criação das canções
para os espetáculos desabrochava fertilmente, embebida da água
daquela fonte inicial.
Também o modo como descobrimos juntos a força
das narrativas em contraponto com a interpretação e caracterização
dos personagens foi fundamental durante todo o processo de amadurecimento profissional
do grupo. Nossa pesquisa de linguagem, utilizando bonecos e adereços
que se mesclavam com nossas atuações, aconteciam atrás
e na frente da “tapadeira” ou “empanada”, como era chamado
o palco dos bonecos. Estes eram criados e manipulados com primor pelas nossas
mestras: mães, avós e tias. Elas eram verdadeiras artesãs
na criação e manipulação dos bonecos, que surgiam
dos mais variados materiais e adquiriam formas surpreendentes, nada convencionais
enquanto fantoches, mamulengos ou adereços que se transformavam em personagens.
Sua sabedoria elas repassavam para nós, que éramos na época
a ala jovem do “Quintal”, a exemplo dos costumes recorrentes na
cultura popular, onde o saber dos mais velhos é transmitido oralmente.
Durante os dez anos de duração do Quintal Teatro Infantil, a presença
do narrador que atuava paralelamente ao desenvolvimento das cenas foi crescente
e marcante. Muitas vezes cabiam aos nossos personagens distanciarem-se dos seus
papéis e narrarem o que tinha acabado de acontecer, isto é, passávamos
da interpretação na primeira pessoa para a narrativa na terceira
pessoa. A partir de então, eu comecei a entender algumas características
do processo narrativo e seu poder de intercambiar a experiência com seus
ouvintes.
Em todos os espetáculos montados pelo nosso Quintal Teatro
Infantil, compus a trilha sonora de modo que todos pudéssemos integrar
nossas vozes, instrumentos artesanais, o corpo e o movimento à ação
cênica. Quando cantávamos, era como se fôssemos o coro grego
que conta e descreve a cena que acontecerá ou que acabara de acontecer.
Em ordem cronológica, o Quintal Teatro Infantil montou os seguintes espetáculos:
1.
O aniversário da Princesinha Papelotes – de Maria Mazzeti –
1973
2. O planeta maluco – de Maria Mazzeti – 1973
3. O circo de Dom Pepe, Pepito, Pepom – de Wanda Bedran - 1973
4. O pescador e o gênio – de Wanda Bedran – 1974
5. Os três porquinhos – adaptação de Wanda Bedran
– 1974
6. Estela, a estrela que caiu do céu – de Wanda Bedran –
1974
7. A bruxinha do caldeirão verde – de Wanda Bedran – 1974
8. Palha seca – de Wanda Bedran – 1975
9. Você tem um caleidoscópio – criação coletiva
– 1975
10. A Estória da moça preguiçosa – de Maria de Lourdes
Martini – 1975
11. Azul ou encarnado? – de Maria Arminda Aguiar – 1976
12. Terra ronca - de Maria de Lourdes Martini – 1977
13. Bem te vejo - de Wanda Bedran – 1978
14. O velho mar - de Wanda Bedran – 1979 a 1980
O
espetáculo “A Estória da Moça Preguiçosa”,
com texto e direção de Maria de Lourdes Martini (a nossa Tia Lolita),
recebeu o primeiro Prêmio Molière de Teatro Infantil, em 1975,
num grande reconhecimento por nossa pesquisa de linguagem dentro do teatro infantil
brasileiro.
A partir de 1977 houve uma dispersão dos elementos mais jovens do grupo
pelas escolhas profissionais em outras áreas e as temporadas no Teatro
Quintal foram interrompidas, sendo este alugado esporadicamente para outros
grupos teatrais. O núcleo, integrado por Wilma Brandão, Wanda
Bedran , Wandirce Wörhle e Maria José Quintas saiu para desenvolver
projetos em escolas e praças da cidade e do interior.
Finalmente elas
decidiram reabrir o teatro para sua última temporada com a peça
“O velho mar”, uma adaptação feita por minha mãe
para um dos contos das Mil e Uma Noites. Fui convidada para a direção
geral do espetáculo além de criar a trilha sonora, gravada com
nossas vozes fazendo os personagens e tendo como fio condutor o som da água:
ondas quebrando, borbulhas, som de remadas.
No início dos anos ’80 , quando o tempo do “Quintal”
findou e cada um seguiu suas escolhas profissionais e pessoais, eu já
havia me decidido plenamente pelo meu caminho da criação artística
voltada para as crianças e absolutamente imbricada com a música
e a narrativa de histórias.